O Apagão de mão-de-obra de TI
Começarei este artigo com uma introdução ácida, para coloca-los no clima de que este tema não é apenas um problema de recursos humanos e tecnologia da informação: ele está afetando todo nosso país.
E se o Rorschach fosse um DBA?
DIÁRIO DE RORSCHACH
12 de outubro de 1985.
Carcaça de um servidor morto no CPD hoje de manhã com marcas de tentativas de restore no HD fritado. A TI tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face. Os sistemas são sarjetas dilatadas cheias de bugs e, quando os logs transbordarem, todos os desenvolvedores vão se afogar. A imundice de todo Full Table Scan e Hard Parse vai espumar até a cintura e os gerentes e analistas vão olhar para cima gritando “salve-nos”… e eu vou olhar para baixo e dizer “não”. Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como Paul Randal ou Tom Kyte. Homens decentes, que acreditavam no suor da modelagem de dados honesta. Mas seguiram os excrementos de preguiçosos e enrolões sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. Agora o Data Center todo está na beira do abismo contemplando o inferno, e os clientes, gestores e vendedores de fala macia… de repente não sabem mais o que dizer.
Agora sim, o Apagão de mão-de-obra de TI
Recentemente li um artigo em um site especializado sobre o famoso Apagão de mão-de-obra de TI, onde entrevistaram diversos CIOs e etc. a respeito deste tema. Não me lembro qual é o site, mas vocês não perderam nada. Nunca li tanta bobagem a respeito.
Os especialistas, ao serem indagados sobre o “Apagão de mão-de-obra de TI”, tiveram várias opiniões. Estre elas, de que são necessárias mais faculdades, que o governo precisa fazer algo, que a esperança deles é a “Geração Y”, e de que a TI “deixou de ser sexy e atraente”, por isto a falta de profissionais. Realmente, muita besteira de quem, simplesmente, não conhece o mercado mesmo se apresentando como um líder do setor. Se conhecem alguns destes CIOs, mandem o link para eles lerem.
Vou explicar o “Apagão de mão-de-obra de TI” para vocês, pois já me sinto com propriedade para tal. Estou a mais de 20 anos neste mercado, e passei os últimos 2 anos trabalhando intensamente em treinamentos. Conheci muitos DBAs, de todos os setores do país. Conversei muito, refleti mais ainda, e esta é minha opinião.
Como um artigo técnico, serei racional como costumo ser, elencando as causas, efeitos, e possíveis soluções.
Causa 01: Faculdades, Universidades.
Falta profissional hoje porque a faculdade (e cursos técnicos do 2o grau) é o maior preparador (em volume) destes, e ela simplesmente não os prepara. O setor acadêmico sempre esteve a décadas de distância do mercado, e 1 ano em TI são 10 anos em fabricação de automóveis.
Pode fazer a faculdade que quiser, e você não estará NEM DE LONGE preparado para o mercado de trabalho.
Quer uma prova? Nunca fiz faculdade. Já tentei fazer diversas vezes, mas não suporto fazer algo por fazer, para inglês ver.
“Ah, a faculdade ensina o básico”. O mercado não quer o básico. Ninguém quer um cirurgião Júnior.
Quer outra prova? Vou poupar os profissionais que conheço, e não citar o nome deles, que possuem Graduação, Pós Graduação, Mestrado e Doutorado, e não sabem administrar realmente um banco de dados, porque você mesmo já conhece alguns. No nível que são, saber fazer ssh e não saber o que é swap. Você deve conhecer alguém assim.
“Ah, mas depende da faculdade”. Amigo, se o país depender de só quem se forma na USP, vai continuar assim.
“Ah, mas é o aluno que faz a faculdade, e não o contrário”. Então não precisa dela, o cara faz sozinho.
“Ah, mas precisa”. Não, não precisa, a não ser que a faculdade mude. Nossa profissão é diferente.
Causa 02: RHs.
Aqui estou falando dos RHs das empresas contratadoras, e não das consultorias.
As consultorias atravessadoras (a seguir) ganharam espaço por causa da incompetência do RH das grandes empresas em contratar profissionais de TI, e mais importante, porque empresas contratadoras não querem pagar altos salários no modelo CLT.
“Ah, a legislação do nosso país não permite uma empresa pague os altos salários de TI no modelo CLT”. A minha consegue, quer ver meu Holerith? Se o empresário não consegue lucro assim, deve mudar de ramo. Nem faz sentido: comparado ao valor de uma licença do Oracle Enterprise (alguns milhões), o investimento no profissional que irá cuidar dele é uma parcela ínfima.
Outro problema dos RHs das empresas é que eles ainda acham que todos profissional deve ser um líder. O DBA vai aumentar tablespace ou liderar uma rebelião? Além disso, profissionais sociáveis potencialmente trabalham menos, pois vivem conversando no café. Nerds tímidos e introspectivos dão excelente técnicos.
Mas entendo parcialmente o lado das empresas, pois um profissional sociável conseguirá enrolar mais facilmente o cliente. Mas tenho uma novidade para você: o cliente sente o cheiro de uma mentira a quilômetros de distância.
Outro motivo é que os RHs dizem que é difícil reter o profissional. Se não investem nele, e pagam a média do mercado, ele vai embora mesmo.
Estes e outros problemas levaram as empresas à nossa próxima causa.
Causa 03: Consultorias atravessadoras.
Outro problema são as “consultorias” atravessadoras. Coloco entre aspas a palavra consultoria, pois estas não possuem conhecimento para opinar em nada em TI, que dirá serem consultadas. A única coisa que elas fazem é ter contatos em clientes grandes (com um RH sem competência para contratar), saber de suas necessidades, e divulgar as vagas na internet. Após receberem os currículos para uma vaga, eles fazem um leilão reverso (o famoso salário “a combinar”), e pegam o profissional que pede menos (se tiver faculdade e umas certificações, ótimo), cobrando do cliente o mesmo que cobraria se o profissional fosse mais caro. Geralmente as provas aplicadas são inexistentes ou ridículas. E se na hora do vamos ver o “profissional” fizer algo catastrófico no cliente, “a culpa foi dele”, “ele disse que sabia”, “nos enganou”, “arrumaremos outro”, “isto não acontecerá mais” e etc. É a famosa alocação, ou “colocation”. E geralmente pagam o profissional no modelo PJ ou CLT Flex, ambos ilegais. O modelo CLT Flex, inclusive, dá cadeia, é sonegação pura. Já PJ só da processo e multa, mas continua sendo ilegal.
Causa 04: Enrolões.
Por causa das consultorias atravessadoras (que não ligam se o profissional sabe realmente ou não) ou dos RHs das empresas, alguns “profissionais” (novamente, aspas) descobriram que pagam melhor a um DBA do que a um Frentista, por exemplo, e fazem faculdade, tiram uma ou duas certificações com os famosos “simulados” (falarei sobre eles logo mais), e encaram o RH, o que é fácil. Se o cidadão tiver o tal “perfil” (leia-se: sabe falar bem, ser sociável, ser um líder – aliás, pra que eu quero um DBA que sabe falar bem? Ele vai fazer um discurso?), está contratado. Lá o cidadão se vira, pede ajuda para os amigos (já que ele fala bem) e tem o Google.
Eu posso falar disso, e principalmente, sei reconhecer um enrolão, pois já fui um. Já disse que sabia algo que não sabia, e graças a uma bronca épica de um antigo chefe após uma catátrofe que fiz, nunca mais fiz isso. Sou muito grato a ele.
Uma vez me chamaram para uma entrevista (consultoria atravessadora) sobre um projeto temporário, sobre ODI. Eu só soube do que era o projeto quando cheguei lá, pois eles só disseram que queriam um “cara de Oracle”. Fui mais por curiosidade, e ao saber que era ODI, disse logo no começo da entrevista (com várias pessoas presentes) que recusaria o projeto, pois não sei ODI. O cidadão ainda insistiu, me disse que esta seria uma oportunidade para aprender, e eu disse não obrigado, isso seria irresponsabilidade minha. Pela atitude dos entrevistadores, nunca haviam visto algo assim. Depois me arrumaram mais N projetos.
Causa 05: Empresas X Treinamentos.
As empresas acham completamente desnecessário que o funcionário faça um treinamento. Se for extremamente necessário (vão instalar um RAC semana que vem e ninguém nem sabe como se escreve RAC), mandam apenas 1 de uma equipe de 10 e pedem que ele “repasse o conhecimento” para os outros. Iss se pagarem 100% do treinamento. Você sabe que isto não funciona.
E mesmo que o profissional pague seu próprio treinamento, a empresa não permite que este seja no horário de trabalho. E vá tentar ler um livro por 30 minutos no trabalho: será tratado como vagabundo. É melhor ser pego no Facebook do que lendo um livro.
E eventos então, como o imperdível GUOB Tech Day? A empresa considera completamente desnecessário (“o cara vai entregar CV lá”), e também costuma mandar só 1 e ele “repassar o conhecimento”… Se fosse possível repassar o conhecimento do Tom Kyte, ele não precisava vir ao Brasil.
Causa 06: Empresas X Experiência.
As empresas sempre pedem alguém com experiência, o que já lhe mostra que ela não quer investir em você: quer você pronto. Isto faz com que seja muito difícil entrar no mercado, a não ser que se minta. É o problema do ovo e da galinha.
Causa 06: Brasileiro não quer pagar.
Odeio falar mal de meu país e meu povo, mas temos uma cultura de evitar ao máximo um investimento e conhecimento. Por exemplo, um amigo me mandou um e-mail dizendo que não tinha dinheiro para ir a um evento, e na assinatura estava “Enviado pelo meu iPad2”. Prioridade é tudo.
Ok, e quais problemas estas causas trazem?
Efeito 01: Remuneração.
As “consultorias” aliadas aos enrolões, com o leilão reverso de salário, inevitavelmente derruba e remuneração média do setor. Sabe aquele enrolão que você conhece? Ele está abaixando seu salário.
Efeito 02: “Desculpe, o sistema está fora do ar senhor”.
Este é o efeito mais grave. Sério, empresas podem fechar (já vi acontecer) pessoas podem morrer (ok, isso não vi). Como os enrolões não sabem o que estão fazendo, e os bons profissionais não possuem treinamento, cada vez mais ouvimos frases como essa. Anote quantos erros de sistema você vê ao longo do semana, em instituições financeiras, supermercados, grandes lojas de material de construção, cinemas, e qualquer empresa grande. Verá que estes problemas acontecem muito mais em empresas médias e grandes, pois elas são mais dependentes de TI.
Efeito 03: Dumps e Provas.
Como o mercado de Dumps – os simulados – em alta, os fornecedores (Oracle, Microsoft, SAP, etc.) tem que alterar suas provas constantemente (o que leva a seu aumento de custo, e portanto preço), e dificulta-las cada vez mais. Sabe aquele colega que lhe pediu um “simulado”? Ele está tornando sua próxima prova mais cara e difícil. Dá um pedala nele, por favor.
Efeito 04: Jornada dupla ou tripla.
Os bons profissionais, para ganhar um valor condizente com o que investiram em sua carreira, pegam dois ou mais trabalhos (o CLT durante o dia, um cliente pequeno aqui, um projeto rápido ali). Sabe aquela consultoria atravessadora? Ela está fazendo você trabalhar mais.
Ok, e como resolver? Reclamar todos sabem. Seguem as soluções que imaginei para o problema.
Solução 01: Abrir mais faculdades
Está é só para constar, esquece. Não adianta de absolutamente nada se continuar do jeito que está.
Solução 02: Treinamento do fabricante.
É de interesse do próprio fabricante que existam mais profissionais capacitados a implantar sua tecnologia. Muitas empresas desistem de implantar, digamos, o SAP, pois o custo do projeto é muito alto. Boa parte do custo do projeto são de recursos humanos, pois profissionais de SAP ganham muito bem, porque existem poucos (demanda versus oferta). Não sou CIO, mas pode ter alguma conta a ser feita pelas empresas neste caso. Se a SAP der treinamento gratuito em sua tecnologia, pode estar gerando mais receita ainda. É uma possibilidade. Sabe o porque de existirem poucos profissionais SAP Basis? A academia custa uns R$ 20.000,00.
Solução 03: Provas práticas.
Por que apenas a Certificação OCM (no caso de Oracle) é prática? Todas deviam ser práticas, pelo menos uma parte delas. Se o cara sabe, ele sabe. Um bom exemplo são as provas da Microsoft, que sempre possuem uma parte prática, pelo menos as últimas que fiz. As provas da Red Hat também são assim. O preço para o fabricante é que o mercado consequentemente terá menos profissionais capacitados, ou seja, esta solução deve andar junto com a número 02.
Solução 04: Divulgação de Valores nos anúncios.
Imagine se tivéssemos uma lei que obriga as vagas a divulgarem as remunerações? Isto inviabilizaria o leilão reverso.
Solução 05: Treinamentos avançados.
Treinamentos avançados e muito, muito práticos (modestamente, como os que faço) realmente preparam o profissional, mas eles tem um grande problema que é não ter escala. Não posso dar mais treinamentos do que dou pois sou só um. Se eu contratar um profissional muito bom para me substituir terei um custo mais, e isso traz o quórum mínimo de alunos, o que impede de vir alguém de fora de minha cidade (o aluno tem que pagar hotel e passagem com antecedência para ser viável). E aquela grande escola de treinamento não quer fazer treinamentos avançados assim, pois o público é menor. Com o público menor, demora mais para atingir um quórum mínimo, e o treinamento acaba não acontecendo.
E escolas grandes não dão treinamentos de “novas” tecnologias (Oracle GoldenGate) ou de tecnologias pouco utilizadas (Sybase), também porque o público é menor.
Solução 06: Queime.
Conhece um enrolão? Conte para todos a respeito. Alguns sub-mercados de TI já são assim, e por consequência estes são os mais fechados e com melhor remuneração.
Solução 07: Regularização da função.
Está também está aqui apenas para constar, pois não sei como isto seria ma solução. Acho que TI é uma área muito esparsa para termos um piso salarial (advogado é advogado), pois se fixarem o piso do “Administrador de Banco de Dados” em X, as empresas vão mudar o nome do cargo para “Gerenciador de programas armazenamento de informações”. Ou vão contratar AD e colocar ele como DBA.
Solução 08: Estudar.
Não adianta querer conhecer uma tecnologia, e passar o dia com 4 redes sociais, 3 comunicadores de mensagens instantâneas, e 2 e-mails abertos. Programe-se, concentre-se, organize-se, e estude, teste, aprenda. Quando me perguntam “como virar DBA?”, eu pergunto “Quantos livros você já leu de Oracle?”
Solução 09: Estágio não remunerado.
Quer entrar na área de TI? Se ofereça para um estágio não remunerado. Desta forma você conseguirá sair da zona da experiência zero. No futuro próximo você irá recuperar este valor, garanto.
Solução 10: Trabalho direto.
O trabalho direto do profissional à empresa contratante, sem a consultoria atravessadora, faria com que a empresa realmente se preocupasse em contratam um bom profissional, treina-lo, e mante-lo.
Solução 11: Outras tecnologias.
Desista da tecnologia com que trabalha e vá para outro menos utilizada, com um mercado menor e mais fechado. Obviamente, será mais difícil entrar, mas veja isto como uma vantagem, E você vai conseguir, pois afinal, você é um bom profissional, já que está lendo o GPO.
Abraço